segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Onde o Outono se agacha para dormir.



Nunca o recomeço foi fácil, tu sabes.
Sabem-no os bailarinos e os artífices,
e também os amantes, entorpecidos
pela longa paralisia da ausência.
Mas nunca ninguém se queixa.


A mão quer ser benevolente
quando a alma empalidece e omite
os sofrimentos que a moldaram.
Há versos serpenteantes como silvos
e gritos lancinantes como adagas.
A casa deixou de ser cúmplice
desta escrita que se alimenta da sua dor.
Um poeta não tem que ser a margem
em que tudo se aninha e se oculta.
Há de ser outro o seu destino.


Eu morri por dentro, torrencial,
como uma máquina ferida, esventrada
pelo brutal ofício da confidência.
Só os cães logram decifrar nos meus olhos
o sacrifício do que nunca será lido.


Um dia hastearás por mim, promete,
na proa de uma nau incandescente,
o pequeno estandarte da alegria
que eu nunca soube partilhar.
O amor será então uma cicatriz,
uma pétala ferida no lugar
onde o Outono se agacha para dormir.


José Jorge Letria
in O Livro Branco da Melancolia

Sem comentários: